quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

entrevista com Dave Eggers-roteirista de "Onde Vivem os Monstros"

Dave Eggers foi uma criança impressionável: não viu "O mágico de Oz" até o fim por medo da Bruxa Má do Oeste e tinha pesadelos com os monstros de Maurice Sendak. Ainda assim, devorava os livros do ilustrador, que considera seu "herói de infância" e o inspirou a seguir carreira artística. Por email, Eggers conta que, em sua versão de "Onde vivem os monstros" (veja o trailer do filme no fim deste post), tentou captar o misto de ameaça, melancolia e aventura que define a obra de Sendak. E critica histórias infantis "esterilizadas" que mascaram estes aspectos da vida: "Muitos pais vão longe demais ao tentar proteger seus filhos de todo risco e decepção. Crianças são animais selvagens, precisam fazer descobertas por conta própria". Numa entrevista recente, você disse que "nossa cultura hoje tende a ser superprotetora com as crianças frente a qualquer risco, decepção, medo ou ameaça". E grande parte da boa literatura infantil joga exatamente com isso: risco, decepção, medo, ameaça ("O mágico de Oz", por exemplo, ou quase todo conto de fadas clássico). Você acredita que uma criança superprotegida tem a mesma capacidade de imaginação que outras? Uma cultura superprotetora tem espaço para a boa literatura infantil? DAVE EGGERS: Bem, acho que há lugar para histórias infantis esterilizadas, assim como para outras mais ousadas e honestas. Se uma criança vai responder ou não a determinado tipo de história depende dela e de sua idade. Eu era uma criança impressionável. "O mágico de Oz" me matou de susto; eu não consegui ver o filme — as cores sombrias, aquela bruxa horrenda e seus macacos voadores. Já minha filha adora o filme, e ela tem só quatro anos. Mas acredito que, até certo ponto, as histórias que oferecemos às crianças estão cada vez mais insossas. “Onde vivem os monstros” é muito menos assustador que "O mágico de Oz", eu acho, mas houve tanto estresse sobre nosso filme, e foi tão desproporcional em relação ao que de fato apresentamos. Acho que muitos pais vão longe demais ao tentar proteger seus filhos de todo risco e decepção. Crianças são animais selvagens. Acho que elas precisam de liberdade para vagabundear, fazer descobertas por conta própria, brincar no mato, em cavernas e na lama. Se tudo vem empacotado e esterilizado, as crianças acabam ficando fora de sintonia com o mundo real. Spike Jonze afirmou várias vezes que não quis fazer um filme infantil, e sim um filme sobre a infância. O mesmo poderia ser dito sobre seu romance? Que tipo de infância vocês quiseram retratar? EGGERS: Spike e eu estávamos determinados a escrever algo que fosse sincero em relação à infância, e isso significava retratar honestamente o divórcio na casa de Max. Ele não entende por que seu pai não está em casa e está cheio de sentimentos conflitantes, de raiva, está confuso porque percebe que o mundo não está sob seu controle. Esses são sentimentos comuns a qualquer criança no planeta, mas isso não se vê muito nos filmes ou nos livros. Então Spike e eu tentamos olhar profundamente essa sensação de desamparo que uma criança experimenta, e como seria bom se ela pudesse de uma hora para outra virar um rei — todo-poderoso, ao menos aparentemente. A partir daí, meu livro se distancia um pouco do filme, porque quis colocar um pouco da minha própria infância nele. Assim fui capaz de expandir as cenas de vida caseira e de dar um pouco mais de informação sobre o divórcio, sobre o pai... Muitas coisas que não caberiam num filme. Livros são generosos assim — você não precisa ter a mesma preocupação com a contagem de páginas que tem num roteiro. Você se lembra quando leu "Onde vivem os monstros" pela primeira vez? O que sentiu? EGGERS: Eu tinha três ou quatro anos e achei muito assustador. Acho que na época eu gostava das coisas em preto e branco — ou o personagem era bom ou mau. Mas os Monstros são complexos, e pareciam ter personalidades e motivações tão multifacetadas, que inquietavam um pouco o garoto que eu era. Havia tanta nuance e ameaça em cada criatura que elas me causavam pesadelos. Mas quando fiquei um pouco mais velho, com uns seis anos, comecei a amar o livro, e hoje é um dos meus livros ilustrados favoritos. Você costumava ter fantasias parecidas com as de Max quando era garoto? EGGERS: Eu era uma criança selvagem e fugi de casa uma dúzia de vezes. Brincava muito no bosque e no lago da nossa cidade. Eu acreditava de verdade que era parte animal. E minha casa era um pouco caótica na época, eu não con$entender aquilo muito bem — o caos que os adultos traziam para o meu mundo. Então tudo sobre o Max era muito familiar para mim. Qual foi a importância da obra de Sendak para sua formação como escritor? Você queria ser ilustrador, não? Chegou a mostrar seus desenhos a ele? EGGERS: Maurice é um herói para mim desde a infância — estudei arte e ilustração e queria desesperadamente escrever e ilustrar livros infantis. Conhecê-lo foi uma daquelas raras ocasiões em que um artista legendário mais do que corresponde ao mito. Ao longo de sua carreira, ele nunca se comprometeu; sempre foi sincero consigo mesmo, com sua sensibilidade muito distinta. Para mim, ele é o maior autor de livros ilustrados de todos os tempos. Mostrei meus desenhos a Maurice e ele foi, digamos, educado. Como você se sentiu adaptando o texto de Sendak, que é muito conciso, quase um poema, para um roteiro e depois um romance de 200 páginas? EGGERS: O mais importante foi não tentar impor uma trama ao filme que descaracterizasse o livro. Queríamos que o filme fosse sobre Max e sobre os Monstros como indivíduos, e não que eles servissem de veículos para uma trama grandiosa e desengonçada. Então tivemos que resistir à tentação de exagerar na trama. No livro de Sendak, os Monstros nunca dizem nada, mas no seu romance e no filme você deu a eles um passado e muitos diálogos. Como construiu suas "personalidades"? Quais são as diferenças entre o roteiro do filme e seu romance? EGGERS: Num certo ponto, Spike e eu tínhamos escrito mais páginas de roteiro do que poderiam caber no filme, então achei que um romance seria um ótimo lugar para reunir as cenas que ficaram de fora. Mas então uma coisa estranha aconteceu — quando comecei a escrever o romance, vi que a história seguia outra direção. Era diferente das primeiras versões do roteiro e também do filme. O romance está de acordo com a estrutura geral do filme, e os personagens são quase os mesmos. Muita gente não vai considerar as diferenças significativas. De qualquer forma, decidi que no romance ia passar mais tempo em casa e na escola com Max antes de ele zarpar para a ilha, além de explorar como a sociedade contemporânea lida com uma criança como Max — que tem um lado selvagem dentro de si e a cabeça em chamas. Em prosa podemos entrar na mente dele e passar um tempo ali, visitar seu passado familiar, ver os paralelos entre sua vida em casa e a vida na ilha. Quando ele está na ilha, pude fazer os Monstros pularem grandes alturas e distâncias e criei um incêndio na floresta — o que teria sido muito mais complicado de executar na vida real. Quando eu era criança, todos os garotos eram obcecados pelo fogo, então pensei que essa seria a maior realização para um garoto, chegar numa ilha e impressionar os Monstros tacando fogo numa árvore. No filme, isso teria um efeito muito mais assustador e controverso; Maurice não gostou nada do incêndio na floresta. No livro, porém, funciona melhor. Sendak já disse que a Disney e seus personagens são terríveis para as crianças e afirmou que nossa cultura é "Disneyficada". Você concorda? EGGERS:Adoro muitas das coisas que a Disney fez. Mas acho que o marketing deles muitas vezes é grosseiro e ofensivo. Eles empurram coisas para as crianças de uma forma exagerada, muito intrusiva e manipuladora. Mas no geral acho que fizeram tantos filmes incríveis e diferentes que não se pode aplicar um único adjetivo ("Disneyficado") a tudo. Olhando em retrospecto para todos os problemas que você e Jonze tiveram para realizar o filme, consegue entender por que a história de Sendak, e sua versão dela, encontraram tanta resistência em Hollywood? Houve um momento em que acharam que o filme nunca sairia do papel? EGGERS: Sempre tive fé que Spike ia conseguir fazê-lo, embora não tivéssemos certeza da escala que teria e de qual estúdio estaria envolvido. Tenho uma visão nuançada do processo. Eu sabia que realizar o filme seria difícil, porque ele tinha dois elementos que estão sempre em desacordo: uma visão excêntrica e um orçamento enorme. Acho que todo artista deve ter permissão para fazer o que quiser, mas não acho que investidores sejam obrigados a pagar por isso. Então, quando Spike e eu começamos o processo, e quando eu soube como sua visão do filme era ousada, tive certeza de que teríamos problemas de financiamento. Também soube, felizmente, que seria trabalho do Spike, e não meu, levantar dinheiro para o filme. Pessoalmente, não sou capaz de pedir dinheiro nem de fazer propostas e orçamentos e esse tipo de coisas. É por isso que publico meus livros por conta própria. do globo-online

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