quarta-feira, 14 de abril de 2010

"Branquibocas"

O cruzeiro está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens. (Machado de Assis) Se nunca mais esqueci meu avô, não foi, com certeza, pelos livros que herdei, mas por causa das histórias que me contava. Acima de tudo por causa daquela, que até hoje atormenta minhas noites, embora eu já saiba conviver com o sofrimento, e os pesadelos sejam bem raros. Mas sempre há uma ou outra noite em que desperto com um grito repentino e desesperado. Minha mulher pula da cama ao meu lado e meu filho, que brinca no quintal, se assusta. Acordo e grito justo na hora em que, no pesadelo, fico face a face com o cão. Meu avô era viúvo, morava sozinho. Suas únicas companhias eram Branquibocas, um vira-latas robusto, e eu, que o visitava todas as tardes, de segunda a sexta. Ao sair da escola, religiosamente passava em sua casa, onde lanchava e ouvia histórias. No início eu sempre ia lá porque minha mãe mandava, mas com o tempo passei a querer ouvir as histórias e acabei criando gosto pelo lanche na casa de meu avô. Ele achara Branquibocas abandonado no Largo do Machado. Dera-lhe um resto de pastel que ia comendo, o cão o seguiu e fixou residência em sua casa, no Cosme Velho. Além de bom companheiro, Branquibocas se tornou o vigia da casa, que era grande demais para um idoso solitário, mas de onde meu avô só sairia morto. O cachorro ganhou potes para água e comida e uma casa de madeira. Era forte, ativo; o pêlo todo negro e algumas manchas brancas ao redor do focinho. Isso lhe valeu o nome estranho que meu avô inventou. — Branquibocas... que nome, papai! Minha mãe censurava. Mas acabamos acostumados. Meu avô era assim. Nunca os personagens das histórias que me contava se chamavam João ou José, mas eram Herminondas, Filosoflandres, Endolarargo, nomes assim. Desde a tarde em que saí da escola e fui apresentado a Branquibocas, passamos a ser dois a ouvir as histórias de meu avô. O cão se aconchegava no sofá, deitava a cabeça no meu colo e ficávamos lá, os dois entretidos. Sua atenção era tão fixa que parecia até entender o que meu avô contava. No fundo acho que ele se tornou um grande amigo da família, ou melhor, um parente mesmo. Eram sempre histórias antigas as que meu avô contava. Coisas do seu tempo, mas que mantinham, a custa de seu talento de narrador, uma graça, um vigor, um interesse únicos. Quase sempre eram histórias dali do bairro mesmo; quando muito, um ou outro episódio que acontecera no centro da cidade ou na Ilha do Governador. Tinha a impressão de que meu avô nunca viajara. Por isso fiquei muito surpreso quando ele me contou a história de uma viagem que fizera aos Pirineus na época da guerra. Uma longa história. continua... autor - Aleaxandre Faria

Um comentário:

Alexandre Faria disse...

Pessoal do Blog: Adorei a foto.

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