terça-feira, 17 de maio de 2011

“Lolita”, de Vladimir Nabokov

Texto de Vinícius Jatobá, que ministra a oficina OFICINA DE JORNALISMO CULTURAL - "A escrita da resenha e crítica cultural" na próxima terça, 24/05.  Inscrições abertas!



Uma das maiores vitórias do humorismo do século passado, uma das narrativas mais extraordinárias e inesperadas já escrita, o romance Lolita, de Vladimir Nabokov, é reeditado no País pela Alfaguara em edição caprichada e nova tradução, de Sérgio Flaskman. Desde sua publicação original, em 1955, Lolita esteve envolvido em inúmeras polêmicas; jamais combalido, sempre saiu vitorioso de todas as tentativas de reduzi-lo e de matizá-lo: incensado como erótico e imoral, fulmiga o ardor do pornógrafo por sua quase completa ausência de erotismo após seus primeiros capítulos; aclamado como ícone de um romance popular, seu estilo é literário demais, e em certas passagens elíptico demais, para ser identificado com qualquer um dos discursos da narrativa de folhetim; quando reclamado pela alta cultura, toda sinistrice de Humbert Humbert e seu pensamento torto, envolta em uma narrativa demasiada estetizada, parece tentar lubridiar seu cinismo, sua vaidade e sua manipulação do foco da leitura de seu relato, gerando constrangimento, uma certa revolta por ter se deixado seduzir pelas palavras de um crimonoso que confessa seus crimes.



Acima de tudo, Lolita é uma comédia. O romance abre com um prefácio em que John Ray, Jr, que faz questão de informar ser um PhD, escreve que o livro em questão é um manuscrito de um criminoso que acaba de falecer antes do julgamento de seus crimes. Ele o classifica como horrível, abjeto, um exemplo de leprosidade moral; afirma que não é um cavalheiro. Que a honestidade de sua confissão não o torna menos culpado. Classifica o manuscrito em questão um clássico para os estudos de psiquiatria. É uma ladainha, paródia precisa que o satirista Nabokov sabiamente elege para alertar ao leitor dos riscos que ele, enquanto autor, irá infligi-los: serem sumamente seduzido por uma mente criminosa. O criminoso abjeto é, no fundo, e em sua própria versão dos fatos, um esteta. Ele inicia seu relato com uma das passagens mais famosas da literatura. Ele alerta que é um assassino e conjura o juri ao seu relato. Mas no final do primeiro capítulo, breves quatro parágrafos, todos são cúmplices de sua doença.

Quanto mais o leitor tiver em mente a situação do manuscrito em questão – escrito na prisão por um homem que, doente, espera seu julgamento –, mais engraçada a narrativa se torna. Humbert, naturalmente, se vende como alguém de uma linhagem nobre, e remonta sua obsessão por Lolita à um amor europeu contrariado de sua adolescência. Algo deprimente, após um divórcio recente, vai aos EUA lecionar literatura em uma faculdade do interior. Deseja escrever um livro pomposo sobre poesia francesa. Torna-se um potencial rei em uma cultura de provincia. Mas logo perde sua majestade: ao conhecer a filha da dona da casa onde aluga um quarto, é arrebatado de paixão e de desejo; em seu escritório, dedica-se a pensar em Lolita, ato que descreve em palavras bonitas que são evidentes disfarçes do onanista. A estória que narra é patética – toda trama de Lolita é patética. Mas é repleta de pequenas ironias que fazem com que o texto tenha vida e viço.

Diz o ditado: Quando Deus quer castigar um homem, Ele lhe dá exatamente o que esse homem mais deseja. Essa é a tragédia de Humbert Humbert: após as tramóias mais descaradas para se manter ao redor de Lolita o maior tempo possível, a fatalidade faz com que todos os obstáculos entre ele e seu desejo desapareçam. O que é felicidiade torna-se tragédia plena: ao materializar em Dolores aquele amor da juventude, eterno, e tê-lo agora em mãos, o conflito de Humbert é duplo – o desejo idealizado é perfeito, sempre satisfaz sem jamais pedir nada em troca, no entanto esse desejo idealizado, que vive na sua mente, não é uma menina minada e manipuladora como Lolita que ele tem que se desdobrar para conter; depois, o tempo atuará sobre a menina Lolita, envelhecendo-a, tornando-a menos perfeita, menos adequada para aquilo que ele precisa, menos objeto de expiação para as culpas que carrega em sua mente e imaginação. Em uma das passagens mais notáveis do livro, Humbert, após observar longamente Lolita e notar as mudanças de seu corpo, chama Dolores de “sua amante decadente”. É um toque de humor sinistro, mas que é revelador do grau de perturbação e alienação em que Humbert se encontra.

A tragédia de Humbert, sua danação, está na tristeza com que encara a evasão de seu Éden, o desmantelamento de seu paraíso pela ação do tempo, a revolta de sua musa pelo seu poeta, que cada vez a satisfaz menos, que cada vez se torna mais repressor e menos compreensível. Não há como voltar atrás: Humbert está tragicamente acorrentado ao desejo que sente por Lolita, e quando esse desejo se desmaterializa, quando a menina começa a se tornar mulher, ele só tem uma saída possível. Mas até esse seu plano é frustrado pela entrada de outro elemento, um perseguidor (e, logo, competidor). Que seu grande crime seja expurgar, como um justiçeiro, o mundo de um sujeito cuja imoralidade é tão canhesta como a sua apenas não é mais engraçada que notar, nas últimas frases do último parágrafo, que assim ele também elimina a possibilidade de outro escritor imortalizar pela prosa a memória da ninfeta Lolita. Obra-prima suprema do humor e da sofisticação, Lolita merece sempre novos leitores.

2 comentários:

Anônimo disse...

"uma narrativa demasiada estetizada": Você sabe que é um estilo?

vinicius jatoba disse...

Jay, uma palavra tem tantos significados... O importante, como jornalista, é comunicar uma idéia, mesmo que você entorte conceitos para conseguir isso... E tem algo rico na língua: há momentos em que a melhor forma de se comunicar é usá-la de forma frouxa, equivocada... Estilo é um uso particular de uma linguagem para que provoque um determinado efeito esperado... Mas também pode ter várias outras apropriações, da mais acadêmica e a mais vernacular... Apesar de atmosférico, obrigado pelo comentário...

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