quinta-feira, 19 de maio de 2011

Um belo conto de Cynthia Magluta surgido na Oficina Literária da Moviola

Sabrina bateu a porta com violência abandonando mais uma discussão com seus pais. Pedro e Camila mal se olhavam com medo de começarem a brigar também. Camila começou a chorar e Pedro ainda gritava que o comportamento de Sabrina só tinha uma explicação, só podia ser droga, muita droga. Era mais um final de semana que começava mal.

Foi procurar a culpada no quarto da filha. Ao entrar, cego de raiva, chutou o baú na entrada do quarto. Começou a remexer nas gavetas da velha cômoda. O guarda-roupa de duas portas abarrotado de vestidos, calças, blusas. Todas as peças organizadas por cor, roupas leves de verão, casacos de frio. As gavetas do armário com divisórias para melhor separar e acomodar as pequenas peças, meias, calcinhas. A raiva não impediu que Pedro admirasse a arrumação da filha. Pena. Tanta ordem parecia ser só para o quarto, porque ela não estudava, porque saía todos os dias e porque voltava tarde da noite, cada dia com um novo cara. Só podia ser droga.
Pintura de Fernando Gopal. Óleo sobre madeira,  30 x 40 cmBem no fundo do armário, encontrou a bonequinha de pano. Sabrina ainda a guardava. Sentou-se, abraçando-a. Encontrou uma enquanto parecia perder a outra. 
 
Ele a comprara na primeira viagem que fizera ao interior do Nordeste, viagem do novo emprego, salário melhor, mas com uma agenda intensa de visitas aos clientes em diversas cidades. Sabrina era pequena, devia ter uns 4 ou 5 anos. Adorou. Cabelo de lã verde, apliques de feltro para os olhos e a boca, vestidinho com diversas cores, fita verde e laço como gola. Elas eram inseparáveis, as duas bonequinhas de Pedro.

De tantas carícias, a bonequinha de pano perdeu a boca. Foi um corre-corre. Sabrina chorava que agora ela não ia saber se a bonequinha estava feliz. Pedro, que sempre gostara de desenhar e pintar, resolveu o problema. Com uma caneta pilot grossa fez um grande U vermelho no lugar da boca perdida. Mais feliz impossível. Vê, filha, ela fica sempre feliz com você. 
 
Sorriu ao lembrar-se de uma das viagens de férias. Sabrina já grandinha não queria levar a boneca, mas não sabia como deixá-la. Camila teve uma idéia. Colocaram a bonequinha sentada na janela de perninhas cruzadas esperando pela volta da família. Mãe, ela pode querer beber água. Um regador resolveu. Fica bonito com essas flores também, não é mãe? Regador com flores, bonequinha sentada na janela. Tudo pronto para a viagem. Jamais se esqueceria daqueles minutos preciosos. Percebia o que era a felicidade.

Em que fundo de armário perdera sua Sabrina? Pedia ajuda à bonequinha que tantas vezes ajudara a convencer a pequena Sabrina a compreender as alegrias, mas também os limites e as responsabilidades do crescimento. Levou a bonequinha para o escritório, que já tinha sido seu ateliê. Procurou o material de pintura para fazer reviver aquele instante de felicidade. Quase não tinha mais nada. 
 
No dia seguinte, levantou cedo e saiu em busca de tela, tintas, novos pincéis. Não sabia pintar de memória. Pediu ajuda a Camila, que adorava fotografar, e juntos refizeram a cena. Camila aguardou a luz certa, se divertiram com seu projeto.
Pintura de Fernando Gopal. Óleo sobre madeira 55 x 40 cmSabrina voltou no final do domingo. Os pais tinham saído para ir ao cinema, deixaram um recado e lanche na geladeira. Uma surpresa e tanto. Não ter briga na volta já era uma boa coisa. Foi dormir cedo. A rotina de segunda feira foi cumprida. Tomaram um café rápido e juntos.
O quadro foi tomando forma e dando tempo para Pedro e Camila reviverem emoções guardadas e quase perdidas. Sabrina não sabia o que acontecia, mas o clima familiar tinha um tom novo. Encontrava os pais conversando e rindo ao som de CDs que não ouvia há muito. Ficava em seu quarto ouvindo também através da porta entreaberta.

Os pais avisaram que iam passar o final de semana fora. Sabrina ficaria em casa. Antes de sair, Pedro e Camila deixaram o quadro embrulhado no quarto dela. Esperavam na volta reencontrar sua bonequinha. Sabiam o que podiam fazer.
O conto “A Bonequinha de Pano” foi escrito para a Oficina Literária que ocorreu na Livraria Moviola, em Laranjeiras, no Rio, sob a coordenação de Alexandre Faria e Oswaldo Martins. Foi uma resposta ao desafio de buscar interfaces entre a escrita e a imagem. As pinturas de Fernando Gopal, de mesmo título, estavam em exposição na livraria e serviram à autora como motivação para a criação do texto. (maio de 2011)

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